O escritor inglês William Shakespeare (1564-1616) é um nome incontornável no universo do teatro e da poesia. Além das peças famosas como Romeu e Julieta e Hamlet, Shakespeare deixou como legado uma série de poemas preciosos onde reflete sobre o amor, o destino, o tempo, a beleza e a vida.
1. Soneto 116
De almas sinceras a união sincera
Nada há que impeça: amor não é amor
Se quando encontra obstáculos se altera,
Ou se vacila ao mínimo temor.Amor é um marco eterno, dominante,
Que encara a tempestade com bravura;
É astro que norteia a vela errante,
Cujo valor se ignora, lá na altura.Amor não teme o tempo, muito embora
Seu alfange não poupe a mocidade;
Amor não se transforma de hora em hora,Antes se afirma para a eternidade.
Se isso é falso, e que é falso alguém provou,
Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.
O soneto 116 é uma das criações mais famosas do poeta. Aqui Shakespeare faz um elogio ao relacionamento amoroso, que parece ser fonte de segurança e estabilidade.
Ele fala do amor como uma espécie de âncora, como um sentimento ideal que sobrevive ao tempo e a todas as adversidades.
O poema que se tornou uma espécie de hino dos apaixonados é um exemplo de criação romântica idealizada.
2. Soneto 88
Quando me tratas mau e, desprezado,
Sinto que o meu valor vês com desdém,
Lutando contra mim, fico a teu lado
E, inda perjuro, provo que és um bem.Conhecendo melhor meus próprios erros,
A te apoiar te ponho a par da história
De ocultas faltas, onde estou enfermo;
Então, ao me perder, tens toda a glória.Mas lucro também tiro desse ofício:
Curvando sobre ti amor tamanho,
Mal que me faço me traz benefício,Pois o que ganhas duas vezes ganho.
Assim é o meu amor e a ti o reporto:
Por ti todas as culpas eu suporto.
No soneto 88 encontramos um sujeito devoto, que oferece à amada toda a sua dedicação. Vemos que se trata de uma relação a princípio desigual: enquanto ele entrega todo o seu coração, ela responde com desdém e o menospreza. Mesmo diante desse comportamento, ele é capaz de superar todas as ofensas que ela lhe causou e continuar amando a mesma.
Apesar de ser um encontro marcado pelo desequilíbrio entre as partes, o sujeito continua louvado a mulher amada e oferecendo todo o amor que pode entregar. Ao ver parte do seu afeto pelo menos parcialmente retribuído, ele fica duplamente contente.
3. Soneto 18
Se te comparo a um dia de verão
És por certo mais belo e mais ameno
O vento espalha as folhas pelo chão
E o tempo do verão é bem pequeno.
Ás vezes brilha o Sol em demasia
Outras vezes desmaia com frieza;
O que é belo declina num só dia,
Na terna mutação da natureza.Mas em ti o verão será eterno,
E a beleza que tens não perderás;
Nem chegarás da morte ao triste inverno:
Nestas linhas com o tempo crescerás.
E enquanto nesta terra houver um ser,
Meus versos vivos te farão viver.
Também bastante popular, o soneto 18 fala do amor de uma forma bastante singular, usando a metáfora da natureza para falar sobre o sentimento.
O apaixonado associa a beleza da amada a um dia de verão e, através de uma série de comparações com elementos da natureza, elogia o seu aspecto físico.
Shakespeare também toca aqui na questão do poder da poesia, já que, através dos versos, o amado permanece eternizado.
4. Soneto 23
Como no palco o ator que é imperfeito
Faz mal o seu papel só por temor,
Ou quem, por ter repleto de ódio o peito
Vê o coração quebrar-se num tremor,Em mim, por timidez, fica omitido
O rito mais solene da paixão;
E o meu amor eu vejo enfraquecido,
Vergado pela própria dimensão.
Seja meu livro então minha eloqüência,
Arauto mudo do que diz meu peito,
Que implora amor e busca recompensa
Mais que a língua que mais o tenha feito.
Saiba ler o que escreve o amor calado:
Ouvir com os olhos é do amor o fado.
No soneto 23 encontramos um sujeito tímido, que ama em silêncio, recluso no seu próprio universo.
A imagem do ator no primeiro verso, que fala de alguém que se exibe corajosamente, contrasta com esse homem discreto, que prefere deixar a eloqüência para os seus livros.
Ao contrário de uma série de poemas de Shakespeare onde o amor é louvado com grandes gestos e de modo suntuoso, aqui vemos a beleza de um amor curtido na calada, de modo quieto e sereno.
5. Soneto 35
Não chores mais o erro cometido;
Na fonte, há lodo; a rosa tem espinho;
O sol no eclipse é sol obscurecido;
Na flor também o inseto faz seu ninho;Erram todos, eu mesmo errei já tanto,
Que te sobram razões de compensar
Com essas faltas minhas tudo quanto
Não terás tu somente a resgatar;Os sentidos traíram-te, e meu senso
De parte adversa é mais teu defensor,
Se contra mim te escuso, e me convençoNa batalha do ódio com o amor:
Vítima e cúmplice do criminoso,
Dou-me ao ladrão amado e amoroso.
O soneto 35 traz uma reflexão sobre a vida feita com um olhar generoso, onde há espaço para reconhecer os erros próprios e alheios. O poeta enumera uma série de aspectos negativos dentro do que a princípio é positivo: até dentro da fonte há lodo e na rosa é possível encontrar espinhos.
Ao invés de camuflar as dificuldades, o sujeito identifica a existência delas e pensa na forma como lidarmos com esses assuntos difíceis. O poema trata justamente sobre esse reconhecimento, mas também sobre o dia seguinte, sobre a necessidade de não chorar mais o arrependimento.
6. Soneto 19
Tempo voraz, ao leão cegas as garras
E à terra fazes devorar seus genes;
Ao tigre as presas hórridas desgarras
E ardes no próprio sangue a eterna fênix.Pelo caminho vão teus pés ligeiros
Alegres, tristes estações deixando;
Impões-te ao mundo e aos gozos passageiros,
Mas proíbo-te um crime mais nefando:De meu amor não vinques o semblante
Nem nele imprimas o teu traço duro.
Oh! Permite que intacto siga avanteComo padrão do belo no futuro.
Ou antes, velho Tempo, sê perverso:
Pois jovem sempre há-de o manter meu verso.
O belíssimo soneto 19 compara o tempo a um leão raivoso, que devora tudo aquilo que vê pela frente.
O poema, profundamente visual, fala de uma forma extremamente poética sobre a nossa incapacidade de controlar o tempo.
O sujeito do poema, apesar de estar consciente da crueldade do tempo, negocia com ele e pede para que não faça mal a sua amada.
7. Soneto I
Dos seres ímpares ansiamos prole
Para que a flor do Belo não se extinga,
E se a rosa madura o Tempo colhe,
Fresco botão sua memória vinga.Mas tu, que só com os olhos teus contrais,
Nutres o ardor com as próprias energias
Causando fome onde a abundância jaz,
Cruel rival, que o próprio ser crucias.Tu, que do mundo és hoje o galardão,
Arauto da festiva Natureza,
Matas o teu prazer inda em botãoE, sovina, esperdiças na avareza.
Piedade, senão ides, tu e o fundo
Do chão, comer o que é devido ao mundo.
O soneto que abre a coletânea de Shakespeare começa falando sobre a importância de deixarmos descendência no mundo para sobrevivermos ao tempo e deixarmos os nossos genes no planeta.
O sujeito que fala procura motivar o outro, que ouve, a procriar, e, diante de uma suposta recusa, é criticado pelo poeta, que ameaça a sua beleza de desaparecer da terra com o passar dos anos dada a inevitabilidade da morte.
8. Soneto 73
Em mim tu podes ver a quadra fria
Em que as folhas, já poucas ou nenhumas,
Pendem do ramo trêmulo onde havia
Outrora ninhos e gorjeio e plumas.Em mim contemplas essa luz que apaga
Quando no poente o dia se faz mudo
E pouco a pouco a negra noite o traga,
Gêmea da morte, que cancela tudo.Em mim tu sentes resplender o fogo
Que ardia sob as cinzas do passado
E num leito de morte expira logoDo quanto que o nutriu ora esgotado.
Sabê-lo faz o teu amor mais forte
Por quem em breve há de levar a morte
A passagem do tempo é caracterizada no soneto 73 a partir da mudança das estações e do crescimento dos animais. As folhas já quase inexistentes denunciam o inverno, enquanto os pequenos pássaros que eram ovos no ninho já fazem barulho e apresentam plumas.
O soneto, com um olhar pessimista, fala do envelhecimento do sujeito. Ele é visto a partir de um sentimento de decadência, de degradação, como se o tempo agisse nele de forma a encaminha-lo rapidamente para a morte. Só o amor aparece como sendo capaz de atenuar e dar consolo nesse momento final da vida.
9. Soneto 138
Quando jura ser feita de verdades,
Em minha amada creio, e sei que mente,
E passo assim por moço inexperiente,
Não versado em mundanas falsidades.Mas crendo em vão que ela me crê mais jovem
Pois sabe bem que o tempo meu já míngua,
Simplesmente acredito em falsa língua:
E a patente verdade os dois removem.Por que razão infiel não se diz ela?
Por que razão também escondo a idade?
Oh, lei do amor fingir sinceridadeE amante idoso os anos não revela.
Por isso eu minto, e ela em falso jura,
E sentimos lisonja na impostura.
Lemos nos versos de Shakespeare uma reflexão sobre a infidelidade na relação amorosa. Vemos também a dificuldade dos amantes de serem francos com relação à idade - ele é mais velho e ela acredita que o amado é mais jovem.
A questão da idade é apenas um dos motivos de conflito entre os dois. Tanto a amada como o seu parceiro parecem esconder informações um do outro: ela porque é infiel, ele porque mente sobre os próprios anos que carrega.
10. Soneto 12
Quando a hora dobra em triste e tardo toque
E em noite horrenda vejo escoar-se o dia,
Quando vejo esvair-se a violeta, ou que
A prata a preta têmpora assedia;Quando vejo sem folha o tronco antigo
Que ao rebanho estendia a sombra franca
E em feixe atado agora o verde trigo
Seguir no carro, a barba hirsuta e branca;Sobre tua beleza então questiono
Que há de sofrer do Tempo a dura prova,
Pois as graças do mundo em abandonoMorrem ao ver nascendo a graça nova.
Contra a foice do Tempo é vão combate,
Salvo a prole, que o enfrenta se te abate.
No soneto 12, Shakespeare reflete sobre a vida, sobre a continuidade do homem através das gerações. O poeta reconhece a descendência - o nascimento dos filhos e netos - como a única forma de vencer o tempo.
No princípio do poema Shakespeare enumera uma série de imagens que nos fazem pensar sobre a passagem do tempo (o relógio, as flores que vão perdendo o viço, as folhagens que se despem). Diante do imperativo que é o passar dos dias, ele encontra nas novas gerações a única maneira de permanecer no mundo mesmo após a sua morte.
11. Soneto XIV
Dos astros não retiro entendimento
Embora eu tenha cá de astronomia,
Mas não para prever a sorte, o intento
Das estações, ou fome, epidemia;Nem sei dizer o que será do instante,
Prever a alguém quer chuva, ou vento, ou raio;
Se tudo há-de sorrir ao governante
Segundo as predições que aos céus extraio.De teus olhos provêm meus atributos
E, astros constantes, leio ali tal arte:
Que a verdade e a beleza darão frutosSe em ti deixas de tanto reservar-te;
Ou um vaticínio sobre ti revelo:
Teu fim põe termo ao verdadeiro e ao belo.
O soneto XIV fala sobre a capacidade de prever o futuro, de antecipar acontecimentos, mas não através da tradicional interpretação do que se passa com os astros.
Ao invés de olhar para o céu de modo a extrair informações, aqui o sujeito, apaixonado, consegue antever o que irá acontecer através dos olhos daquela que ama. É ao observar seu olhar de modo demorado que o poeta se torna capaz de prever o destino.
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